
Algumas famílias têm motivo para celebrar o dia dos pais em dobro. É o caso das crianças e adolescentes que, por causa da possibilidade judicial de uniões homoafetivas, têm dois pais, configuração familiar que leva a desafios diante de preconceitos. Mas também a avanços na educação.
No Brasil, o casamento entre pessoas do mesmo sexo só é possível há dez anos, após a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já a adoção de crianças por esses casais data de 2015, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
O psicólogo Alexandre Amorim eo funcionário de cartório Renato Elias são uma família há 12 anos, quando formaram uma união estável (permitida desde 2011) em Florianópolis (SC). Há sete, eles também são pais.
Em 2016, o casal adotou sara, que hoje tem 7 anos. Depois, em 2021, chegou logan, de 1 ano. Ambos adotaram ainda nos primeiros dias de vida.
Amorim e Elias dizem que optaram pela adoção por considerarem o procedimento mais prático. E, ao longo do processo, afirmam não terem tido dificuldades.
Além da adoção, casais homoafetivos podem ter filhos no Brasil por meio da reprodução assistida, seguindo as diretrizes do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Entre os métodos dessa reprodução estão a fertilização in vitro — com doação de desenvolvimento feita de maneira anônima ou por pais de até quarto grau.
Há também a barriga solidária, que, pelas regras do CFM, tem que ser de pais dos pais em até quarto grau.
“Eu sempre quis ser pai. Um dos meus maiores sofrimentos quando estava me entendendo como um homem gay era imaginar que nunca seria pai. [Naquela época]uma família composta por dois homens era algo completamente inimaginável”, relata Amorim
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Alexandre Amorim e Renato Lino combinaram já no primeiro encontro do casal que iriam ser pais
Crédito: Arquivo pessoal/Alexandre Amorim -
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A pequena Sara não sente falta de figura materna, diz um dos seus pais, que enfatiza que não há nada que só possa ser feito, numa família, por uma mulher ou por um homem
Crédito: Arquivo pessoal/Alexandre Amorim -
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Amorim e Lino acredita que as leis precisam ser mais duras para garantir a proteção às famílias que adotam crianças
Crédito: Arquivo pessoal/Alexandre Amorim -
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Casal adotou seus filhos nos primeiros dias de vida de cada um deles
Crédito: Arquivo pessoal/Alexandre Amorim
“Não tive um pai que me amosse e queria, por exemplo, poder dar o que eu nunca tive, repartir o amor que cultivei por mim mesmo, sozinho, por tanto tempo, que ficou tão grande que sobrava para dividir”.
O combinado de que pais seria feito já no primeiro encontro do casal, para caso continuassem juntos. Após a adoção, o maior medo deles era em relação à escola da filha, já que, quando eram crianças, enfrentavam preconceitos e assédio moral sem ambiente escolar.
No entanto, foram presos com a mudança das coisas e encontraram respeito e inclusão: “A escola sempre foi o nosso maior medo. Mas ela nos acolheu, os outros pais nos acolheram bem, e os colegas da Sara também”, diz Amorim.
“Ainda fomos íntimos pelo material didático, que fazia referências a famílias homoafetivas, várias referências diluídas nas apostilas de português, matemática, ciências, etc”.
Com isso, o cotidiano de Sara na escola tem ajudado a fortalecer a naturalidade com que os pais tratam a questão dentro de casa com ela.

“Desde cedo conversamos com a Sara, o Logan ainda está aprendendo a falar, sobre as configurações familiares. Pra ela, não falta nada em uma família se há amor, respeito e cumplicidade”, relata Amorim.
Pára Claudio Picazio, psicólogo especialista em sexualidade humanaa comunicação clara com as crianças ajuda a prepará-las para situações de ocorrências.
“Tem que falar para as crianças é: ‘Tem gente que acha que duas pessoas não podem se amar’. Estamos falando da liberdade de amar, se ele tem dois pais, ótimo, se tem duas mães, ótimo, e que isso é tão normal e vai ser tão comum como qualquer outra coisa”, afirma.
“Trabalhar isso, explicar isso, eu acho que é muito bom, sempre numa relação de amor. Quando você passa [a informação aos filhos] com carinho, com amor, você tem essa relação legal, isso é sempre muito bom”.
Já sobre o ambiente escolar, o especialista destaca a importância do envolvimento dos pais com a instituição, com os outros pais e responsáveis, com colegas dos filhos, para que tudo seja encarado com a maior naturalidade possível.
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“É importantíssimo os pais participarem das reuniões, falarem com outros pais, trazer os amigos dos filhos para casa, receber bem, levar, participar de festinhas, participar das relações sociais dos filhos, isso é superpositivo”, diz.
Essas relações, ainda segundo o Picazio, podem contribuir na educação das demais famílias, evitando a resistência de preconceitos.
Outra família com formação semelhante é a do professor Chico Lacerda46, com o administrador João Andrade51, juntos há 11 anos em Recife (PE).
Eles são pais de João Henriquede 12 anos, e Isaqueque tem 15. No caso deles, os meninos foram adotados quando já tinham 5 e 7 anos de idade, também em 2016, o que levou a desafios diferentes para os pais.
Eles pediram para entrar na fila de adoção em 2015. O processo — que durou um ano com entrevistas com psicólogo, assistente social e participação em um grupo de preparação — ocorreu sem discriminações ou estranhamento das crianças, relata o casal. Foi também quando decidiu adotar crianças entre 1 e 8 anos de idade.
Após a adoção, Lacerda e Andrade perceberam os primeiros desafios. Em alguns momentos, as crianças demonstraram certo recebimento de falar em público que tinham dois pais.
“Depois de adotados, sofridos em alguns momentos, um certo recebimento de dizer que tínhamos dois pais ao conhecer pessoas novas. Não havia uma questão dentro de casa. É muito tranquilo e naturalizado. Mas, principalmente do mais velho, em certo momento, isso era uma questão. Era quase como se tivesse que sair do armário de alguma forma”, relembra Lacerda.
A situação foi encarada pelos pais como algo ligado ao período da pré-adolescência, quando a autoimagem e imagem para os colegas têm maior peso na socialização.
“Muitas crianças passam por processos de vergonha dos pais por questões polêmicas”, compara Lacerda. “A gente ia tratando sempre de uma forma leve e natural”.

Outra dificuldade enfrentada por causa da idade das crianças foi o início do ano letivo, já de imediato após a adoção.
“Eles chegaram em fevereiro, início do período escolar. Conseguimos a escola que tinha disponível na época, na qual eles passaram seis meses. E, lá, houve certos olhares de outras famílias”, conta.
Outro ponto que Lacerda ressalta é a questão da imagem materna, que, em alguns momentos, os filhos justificaram sentir falta.
“Por causa da idade deles, eles tiveram vivências diferentes em relação à mãe biológica. Enquanto o mais velho nunca teve isso, não ter uma mãe não era uma questão para ele, o mais novo, aparentemente, sentiu mais falta dessa figura e verbalizou essa ausência”.
O psicólogo de João Henrique chegou a ser usado em conflitos com colegas, que diziam que ele não tinha mãe para machucá-lo.
Não há um problema em não ter uma figura materna ou paterna no núcleo familiar, segundo o psicólogo Claudio Picazio. Ele enfatiza diversas configurações familiares nas quais não essas figuras, não somente em famílias homoafetivas.
“A gente não deve omitir [a eventual falta de uma mãe], mas a gente vai buscar sempre, em algum lugar, uma figura que a gente gosta. Tem sempre uma tia, uma amiga, que a criança vai ver como um produto do sexo oposto ao que ela tem de pais, como uma pessoa legal, que é bacana. O que a gente não pode é desqualificar os gêneros, de forma geral”, afirma o especialista.
A solução que os pais encontraram foi justamente essa: “Eles encontraram figuras femininas importantes em duas das irmãs de João. Cada um tem uma ligação mais forte com cada uma delas, uma figura feminina mais próxima”, diz Lacerda.
Além disso, o casal diz perceber que, em casa, cada um representa modelos sociais para os filhos, nos quais um é mais “a figura da lei” e outro “mais o acolhimento”, algo que, para eles, tem a ver com figuras de mãe e pai de uma família heteroafetiva.
“A gente sabe que, em algumas famílias, a coisa é invertida, a mãe ocupa a figura da lei. E a gente entende que cada um de nós ocupa um lugar assim em relação aos meninos”, completa Lacerda.
“Quando se estabelece uma relação de amor e de tranquilidade a respeito disso [do formato familiar]e os pais se sentiram à vontade para ter um filho, eles vão saber lidar com isso de uma maneira muito legal”, pontua Picazio.
“Pais homossexuais podem deixar filhos mais fortes, menos preconceituosos, já entendendo de diversidade, da vida, dos problemas que existem no mundo. Onde existe amor, respeito, regras, limites positivos, isso é absolutamente fantástico para qualquer criança se desenvolver”.
Direitos conquistados?
Os pais ouviram pela CNN ressaltaram que, em seus casos específicos, não têm medo de terem direitos revertidos, mas que sabem que a situação é possível.
“Acho que não há uma insegurança porque não vislumbro isso tão rapidamente, e, ao mesmo tempo [diante de casos de reversão de direitos, como o que ocorreu na Itália]fica a sensação de que o que foi concedido agora, a partir das circunstâncias, pode ser retirado em algum momento”, comenta Chico Lacerda.
“Entendo que direitos nunca são eternos. Da mesma forma que podem ser ampliados, eles também podem ser diminuídos em algum momento”, completa.
Já Alexandre Amorim cobra leis mais duras para garantir a segurança jurídica nestas famílias com dois pais, formadas por adoção ou outro método.
“A qualquer momento, tudo pode acontecer. Acho que precisa ter leis mais fortes em relação à adoção. No cenário geral, não acho que as famílias homoafetivas e as famílias por adoção estejam protegidas 100% juridicamente. Na teoria, estão sim. Na teoria, depois de completar todo o processo [da adoção] nada pode ser feito [para reverter]mas há casos que mostram que essa teoria não se sustenta tão firmemente”.
Para Amorim, é importante que mais grupos da sociedade se engajem na defesa dos direitos das famílias, de qualquer formatação.
“Não precisa ser da comunidade [LGBTQIAP+] para lutar contra lesbofobia, transfobia e homofobia. E ninguém precisa estar pensando em construir família para lutar pelo direito das famílias”, finaliza.
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